sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Je suis Charlie


 
 
 
 
A ligação nunca foi premeditada.
Tenho pintado muito o tema, a Liberdade, mas nesta minha procura, através da estética e da arte, pelo significado e implicações do conceito, nunca fiquei tão aflitivamente consciente e próximo da realidade como nestes dias em que penso que todos nos sentimos um pouco como Charlie e tão convictamente afirmámos que somos, acima de todos os medos e inquietações, Charlie.
Somos esse Charlie frágil, com defeitos, incoerências, mas livre, ativo, irreverente, não em causa própria, mas para a causa pública, res publica.
Esta semana andei assim, sem dar conta, a pintar esta obra imperfeita.
Uma mulher caminha, com uma colher de sobremesa, para um paraíso terreno, o mundo em forma de pão-de-ló, coberto de massapão doce, já meio comido. É metáfora do nosso Mundo, com os recursos meio esgotados, ao serviço do desenvolvimento e da Civilização.
Esta mulher monumental, Deusa, nua (como a Verdade), imponente, determinada, orgulhosa, caminha (como poderia ela não o fazer) para lhe dar mais uma valente colherada, sabendo contudo que a cada colherada, esse paraíso também desaparece, assim como a miragem da Felicidade, pelo menos aquela material que quase todos ambicionamos.
Enquanto pintava e ouvia as primeiras notícias do atentado na redação do Charlie Hebdo, tremi de medo e pensei: “Epá, tenho de ter cuidado com o que pinto. A nudez, o humor e a liberdade que uso nas minhas pinturas coloca-me em risco e agora, Pai de Filhos, é melhor não melindrar ninguém. O perigo pode bem morar ao lado, junto á nossa porta.”
Não!Não!Não!
Como é fácil sentirmo-nos esmagados por estes acontecimentos e por esta ideologia do terror e da pequenez do pensamento, ao ponto de nos sentirmos manietados.
Já recomposto, olho agora para a marcha na Praça da República em Paris e sinto, como há muito não sentia, uma tranquilidade inexplicável e um orgulho sem fim nesta Europa, contemporânea, nesta construção civilizacional ocidental de que tão inexoravelmente sou filho e fruto.
Afinal, também nós já tivemos na história da construção europeia, inquisições, decapitações, tortura, escravatura, genocídios e lutas fratricidas.
O nosso crescimento civilizacional já passou por crimes incomensuráveis e por limitações e manipulações abomináveis da liberdade e dignidade da Pessoa Humana e das Sociedades.
Mas hoje, por tudo isto e para além de tudo isto, crescemos, evoluímos e nas ruas de Paris caminham dois milhões, em sintonia como muitos biliões de mais, sem dúvidas ou hesitações, de cabeça erguida, muçulmanos, judeus, cristãos, ateus, sics, hindus,budistas, proletários, capitalistas, líderes, aliados e adversários pela Liberdade, Tolerância e Fraternidade.
Em anos de austeridade, acordo como esta mulher madura, livre, civilização imperfeita, “Marianne”, sem soluções definitivas, mas determinada, de olhos postos no futuro, mesmo que incerto, e com o passado resolvido e apaziguado, não como trilho de terra queimada, antes História que alumia.
Obrigado pela coragem Charlie ! Viva a Liberdade!

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