Tenho pintado muito o tema, a Liberdade, mas nesta minha
procura, através da estética e da arte, pelo significado e implicações do
conceito, nunca fiquei tão aflitivamente consciente e próximo da realidade como
nestes dias em que penso que todos nos sentimos um pouco como Charlie e tão convictamente
afirmámos que somos, acima de todos os medos e inquietações, Charlie.
Somos esse Charlie frágil, com defeitos, incoerências, mas
livre, ativo, irreverente, não em causa própria, mas para a causa pública, res publica.
Esta semana andei assim, sem dar conta, a pintar esta obra
imperfeita.
Uma mulher caminha, com uma colher de sobremesa, para um
paraíso terreno, o mundo em forma de pão-de-ló, coberto de massapão doce, já
meio comido. É metáfora do nosso Mundo, com os recursos meio esgotados, ao
serviço do desenvolvimento e da Civilização.
Esta mulher monumental, Deusa, nua (como a Verdade),
imponente, determinada, orgulhosa, caminha (como poderia ela não o fazer) para
lhe dar mais uma valente colherada, sabendo contudo que a cada colherada, esse
paraíso também desaparece, assim como a miragem da Felicidade, pelo menos
aquela material que quase todos ambicionamos.
Enquanto pintava e ouvia as primeiras notícias do atentado
na redação do Charlie Hebdo, tremi de medo e pensei: “Epá, tenho de ter cuidado
com o que pinto. A nudez, o humor e a liberdade que uso nas minhas pinturas
coloca-me em risco e agora, Pai de Filhos, é melhor não melindrar ninguém. O
perigo pode bem morar ao lado, junto á nossa porta.”
Não!Não!Não!
Como é fácil sentirmo-nos esmagados por estes acontecimentos
e por esta ideologia do terror e da pequenez do pensamento, ao ponto de nos
sentirmos manietados.
Já recomposto, olho agora para a marcha na Praça da
República em Paris e sinto, como há muito não sentia, uma tranquilidade
inexplicável e um orgulho sem fim nesta Europa, contemporânea, nesta construção
civilizacional ocidental de que tão inexoravelmente sou filho e fruto.
Afinal, também nós já tivemos na história da construção
europeia, inquisições, decapitações, tortura, escravatura, genocídios e lutas fratricidas.
O nosso crescimento civilizacional já passou por crimes
incomensuráveis e por limitações e manipulações abomináveis da liberdade e
dignidade da Pessoa Humana e das Sociedades.
Mas hoje, por tudo isto e para além de tudo isto, crescemos,
evoluímos e nas ruas de Paris caminham dois milhões, em sintonia como muitos
biliões de mais, sem dúvidas ou hesitações, de cabeça erguida, muçulmanos,
judeus, cristãos, ateus, sics, hindus,budistas, proletários, capitalistas,
líderes, aliados e adversários pela Liberdade, Tolerância e Fraternidade.
Em anos de austeridade, acordo como esta mulher madura,
livre, civilização imperfeita, “Marianne”, sem soluções definitivas, mas
determinada, de olhos postos no futuro, mesmo que incerto, e com o passado
resolvido e apaziguado, não como trilho de terra queimada, antes História que
alumia.
Obrigado pela coragem Charlie ! Viva a Liberdade!
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