sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Mysterium Coniunctionis



“- Traz-me um fruto da figueira-da-índia
- Ei-lo, senhor
- Parte-o
- Já está, senhor
- O que vês?
- Sementes muito pequenas, senhor
- Parte uma
- Já está, senhor
- E agora, que vês?
- Nada, senhor
- Meu filho – disse o pai – o que não distingues é a essência, e nessa essência existe a poderosa figueira-da-índia.
Acredita, meu filho, que nessa essência está a natureza de tudo o que existe.
É a Verdade, é o Ser. E tu és o Ser, Svertaketu! “

In “Upanishadas, Comentários aos Vedas” (400 a.C.)



A sabedoria que na AFID, diariamente e com privilégio, entre as sementes da sua edificação, Pessoas muito Especiais, se colhe – é uma sabedoria das pequenas coisas.
É a sabedoria do que os nossos olhos não vêem e que por vezes escapa ás mais fugazes leituras, para porfim se desvelar em rasgos de verdade, para nos falar da essência das nossas identidades – Individual e Colectiva.

É também esta uma das nossas missões: encontrar espaço para a expressão livre e construção plena deste ser.

É comungar com os que entre nós vivem, se alimentam, descansam e criam, de uma qualidade de vida alcançada tanto nas pequenas acções quotidianas como no trabalho criativo que na sua imaginação e entre as suas mãos nasce.

É sobre essa existência livre e compensadora expressa através da criatividade e o seu valor intrínseco, essencial, humano que esta exposição “Mysterium Coniunctionis”, se debruça.
Mysteríu (lat.), Mystérion (gr.), Mistério… na antiguidade pagã era, curiosamente, uma cerimónia a que apenas iniciados podiam assistir.

É com alguma ousadia que propomos ao público, desta mostra colectiva, que a encare de forma iniciática.
Não prisioneira nem reverente da sua proposta estética, mas crente desta “conjuntiõne”, desta união mais ou menos fortuita de sinais e forças expressivas que em si transportam a revelação simples e importante de uma origem e natureza comuns – um guia para a procura da alma. A nossa e a dos outros.



“Se num grego é suscitada a recordação de Deus pela arte de Fídias, num egípcio pela veneração dos animais, noutro homem por um rio, noutro ainda pelo fogo – não sinto cólera pelas suas divergências; deixai-nos saber, deixai-nos amar, deixa-nos recordar.”

Máximo de Tiro


A diversidade que, tão bem conhecemos por laborarmos entre e sobre a Diferença, não significa divergência.
Quem a conhece, e logo valoriza, entende-lhe aquela riqueza que lhe atribui um potencial aglutinador, que magnetiza as pessoas, que as une e mobiliza.



É a riqueza de saber, de amar, de recordar em conjunto, e a urgente pertinência de valorizar este legado, sobretudo numa época em que visões maniqueístas, exacerbadas se impõem e insuflam em conflitos latentes ou emergentes, globalizados, que nesta viragem de século nos recordam, de forma perigosa, as bizarrias da nossa espécie: Chauvinismo, Xenofobia, Holocausto…
Hiroshima e Nagazaki fizeram, em 2005, 60 anos sobre o seu Apocalipse Nuclear, e o fantasma da aniquilação total, volvidos seis décadas, continua presente.

Hoje, mais do que nunca, faz sentido recordar… e o acto criativo é uma das pequenas grandes formas de o fazer, sem nomes que o reduzam, redundem ou limitem sem fronteiras sobre as quais se possam fundar divergências ou conflitos, sem interpretações unívocas, dogmáticas, fechadas.




“Outro mestre estava a tomar chá com dois dos seus alunos quando, subitamente atirou o leque para um deles, dizendo «o que é isto?» o aluno abriu-o e abanou-se. «Não é mau», foi o seu comentário. «Agora tu.», continuou, passando-o ao outro aluno, que imediatamente fechou o leque e coçou o pescoço com ele. Feito isto, abriu-o novamente, colocou um pedaço de bolo sobre ele e ofereceu-o ao mestre. Este foi considerado ainda melhor, porque, quando não existem nomes, o mundo deixa de estar «classificado dentro de limites e fronteiras».

In “O Caminho do Zen”, de Alan Watts



Nas Artes, nas Plásticas de que é exemplo o trabalho realizado pelos autores das Oficinas de Artes da AFID, o manancial interpretativo não se esgota no limite de qualquer nomenclatura ou classificação.

Nas Artes a alternativa que se propõe e em potencial se dispõem é quase da ordem do metafísico.
Para além da realidade ou das suas representações, possibilita-nos a descoberta do sublime.
Em determinadas ocasiões, a arte, o acto criativo, postulam uma verdadeira superação, transformando os seus criadores em verdadeiros demiurgos, e as obras criadas em figuras simbólicas, iconografias autónomas férteis elas próprias capazes de alimentar dinâmicas, vidas, sonhos e revoluções.

A criatividade como forma de sublimar e superar, as suas infinitas possibilidades escondidas e envolvidas no mundo e nas coisas e seres que a compõem, garantem-nos uma verdadeira e frutífera liberdade.
Liberdade curativa, como aquela que assiste ao domínio do sonho, em que tudo é efectivamente possível, o cimo pode passar a ser baixo, o impensável consequente e lógico, e quanto essa liberdade de reorganização interior e exterior nos permite manter um discernimento mais completo e saudável do real e do irreal.

A criatividade veíncula, efectivamente, tudo o que consideremos possível e imaginável, abraçando desde o absurdo, o tangível até ao transcendente.




“As obras de arte foram encantadas pelos seus mágico-criadores, e os espectadores submetem-se á magia e, na melhor das hipóteses, são afectadas.
O poder do objecto cura e educa, edifica e concede poderes.”

in “Como Educar a Alma”, Arte e Arquétipo, de Daniel J. Boorstin




Esta magia, “mysterîu”, desvendado em imagens irredutíveis, é o veículo para a descoberta da vastidão do Significado e a profundidade da Experiência.
Na verdadeira obra de arte o que nos é demonstrado não é um exercício de auto-expressão mas sim uma verdadeira epopeia, viagem à descoberta “(…) de uma esfera profunda e arquetípica” (Daniel J. Boorstin in “Como Educar a Alma”, Arte e Arquétipo).

A viagem que os nossos autores vos propõem não é do foro pessoal, não redunda apenas no universo dos seus afectos mais próximos; é muito mais ampla, embarca numa odisseia comum a todos nós, a busca de uma origem comum, de uma memória colectiva, do pathos em que fundámos e descobrimos o ethos, do berço da nossa mais profunda humanidade.



“Ele chegou perto dela, muito perto, mas não a viu. Porque ela era uma daquelas almas que nunca se abre, que temos de saber como estudar e que temos de analisar com grande paciência. Em épocas recuadas, um pintor tê-la-ia escolhido para um quadro de género. Ela teria sido uma criada de fora, uma aguadeira… ou uma rendilheira.”

in “A Nova Rendilheira”, de Eva Loewe




Entre a grandeza da tarefa destes autores e a modéstia dos seus recursos - uma tela, um pincel, um pedaço de barro - está muitas vezes a inépcia do espectador em tocar a obra e por ela ser tocado.
Num mundo normalizado, fundado numa fé cega na tecnologia e na tecnocracia, articulado ao ritmo da batuta dos média, da Internet mais rápida que Obikwelu, dos telemóveis com imagem em tempo real, um mundo Wireless, ligado sem fios mas também sem laços, a receber e a debitar sentenças avassaladoras, urgentes, hipnóticas… pouco tempo resta para os gestos simples, o tempo das rendilheiras, das tecedeiras, dos autores dos gestos simples e cuidados admiráveis.

O convite que aqui vos deixamos é este, o de que parem neste tempo para que possam tocar e ser tocados.
Esta arte não imprime movimento, não desloca mundos físicos, não impele e, em si, dificilmente é causa fenomenal. Não vos moverá dentro de um espaço físico, a não ser para que lhes possam seguir os gestos, pistas dispostas em série nas paredes de uma galeria.

Mas tem decerto a força necessária para comover, para impressionar, abalar, agitar, enternecer… sensibilizar e desta forma pôr-nos em movimento.

Um movimento com rumo, de aproximação ao Mundo, ao Outro e, quem sabe até, um dia talvez, à mais sublime das revelações.




Nuno Quaresma
Professor de Pintura – AFID
Novembro de 2005



Sem comentários: